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Islam no Brasil
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Uma embarcação otomana aportou no Rio de Janeiro em 1866. A  bordo vinha uma autoridade religiosa muçulmana, de nome Abdurrahman al-Baghdádi. Ele nascera em Bagdá, fora criado em Damasco e era súdito do Império Otomano, que nessa época controlava a maior parte do Oriente Médio. O imã chegou ao Brasil, pode-se dizer, por acaso. Tempestades tiraram seu navio do rumo. Como ainda não existia o Canal de Suez, a embarcação precisava contornar o continente africano para ir de Istambul ao seu destino, Basra. No entanto, por causa do mau tempo, o religioso foi “levado à força, sem qualquer opção”, para o Rio de Janeiro.

Ao descer no porto, Al-Baghdádi, que era um respeitável erudito, versado em teologia e em diversos idiomas, surpreendeu-se ao ser saudado com o cumprimento tradicional islâmico, as-salámu ‘alaykum (“Que a paz esteja contigo!”). Aos poucos, foi descobrindo que havia no Império do Brasil uma população muçulmana bastante organizada – a umma, como é denominada a comunidade islâmica –, na verdade, a maior da América Latina. Por isso, acabou ficando por aqui mais tempo do que imaginava. Dessa sua experiência em terras brasileiras restou um documento valiosíssimo – o único registro conhecido de um olhar árabe muçulmano sobre o Brasil do século XIX.

No manuscrito, guardado pela Biblioteca de Istambul após o fim do Império Otomano, Al-Baghdádi relata sua viagem e descreve, de forma minuciosa e especializada, as práticas e as crenças da comunidade muçulmana no Brasil e, em particular, dos remanescentes dos malês, como eram conhecidos aqui os muçulmanos de origem africana. Estes lideraram a principal revolta de escravos urbanos das Américas – o levante dos malês, em 1835, em Salvador. A rebelião desses escravos cultos acabou depois de vigorosa repressão; houve prisões e execuções, mas os efeitos desse movimento de libertação, que atuava havia décadas, fizeram-se sentir na Bahia, no Rio de Janeiro e em várias outras localidades do Império do Brasil. 

O relato do imã é o principal documento do século XIX sobre os malês de que se tem registro. Redigido em árabe, turco otomano, persa, francês, grego, português e tupi (todos em caracteres árabes), em uma linguagem rebuscada e poética – o que atesta o multilingüismo e a formação literária do imã –, o texto retrata o cotidiano da escravidão nas principais cidades brasileiras em meados do século XIX, o que permite levantar novas questões a respeito da história social do regime escravista no Brasil. O documento ajuda ainda a compreender o processo por meio do qual as autoridades religiosas – neste caso, Al-Baghdádi – tentam promover uma mediação entre o Islã e a realidade cultural brasileira. Constitui uma fonte de informação não só histórica, mas também geográfica, antropológica, religiosa e literária sobre o Brasil, a África, os árabes e os otomanos.

A notícia da presença de Al-Baghdádi no Brasil correu de boca em boca pela comunidade muçulmana e também por meio de informes escritos feitos por esses escravos letrados, e logo extrapolou os limites do Rio de Janeiro. Delegações vindas da Bahia e de Pernambuco chegaram a viajar até a então capital do país com a missão de convidar o ilustre visitante a ministrar aulas sobre as fontes e as doutrinas do Islã. No Rio de Janeiro, que o imã descreveu como uma “magnífica cidade”, ele chegou a instruir por dia mais de 500 pessoas, entre escravos e libertos, nas práticas e nas doutrinas muçulmanas. Como professar o islamismo era proibido, ele reunia seus discípulos num local clandestino, a cerca de 20 quilometros do centro da cidade. Em Salvador e no Recife, também lecionou em locais secretos.

O relato do imã, “bagdali de origem e nascimento, damasceno de pátria e crescimento”, revela uma forma de apreensão do Brasil, da sua história e do papel das populações muçulmanas nunca antes vista. Ele conta que encontrou em uma livraria do Rio de Janeiro um Alcorão impresso na França. Com o intuito de garantir o acesso ao livro sagrado muçulmano e ampliar o conhecimento dos muçulmanos acerca dessa fonte fundamental, encomendou vários exemplares do Alcorão ao livreiro mediante o pagamento de um depósito, posteriormente restituído.

No manuscrito, fica clara a liderança de africanos muçulmanos nos movimentos antiescravidão. Após as rebeliões da primeira metade do século XIX, os escravos seguidores do Islã passaram a ser mais reprimidos pelo Estado imperial em sua prática religiosa. Era comum a intervenção da polícia quando se reuniam, e por isso muitos decidiram esconder sua religião e evitar a exposição pública durante as celebrações.

Al-Baghdádi narra que, por causa do medo de serem identificados como muçulmanos, muitos praticantes iam para casa durante o dia para rezar secretamente. Outros, para os quais isso não era possível, recuperavam a oração do meio-dia e da tarde no período da noite, já em casa. O imã não emprega em nenhum trecho de seu relato a palavra masjid (mesquita). Aparentemente, os muçulmanos tinham apenas salas de reunião, que descreviam com o termo árabe majlis.

O catolicismo era a principal forma de inserção social dos indivíduos no Estado imperial brasileiro. Como Al-Baghdádi demonstra, os muçulmanos eram obrigados, aqui, a batizar os filhos, a não ser que eles tivessem recebido o sacramento no porto de saída da África. Só assim ganhavam uma certidão comprobatória e evitavam complicações. Para que pudessem ser enterrados, também tinham de apresentar um documento que atestasse seu vínculo com a Igreja. Apesar das proibições, Al-Baghdádi instruiu seus discípulos a despir e lavar o falecido, além de orar em pé por sua alma, conforme dita a tradição islâmica. Na escatologia muçulmana, após o ritual e o enterro, os anjos Nakír e Munkar testam a fé do falecido e o questionam a respeito de Deus, da religião e dos profetas.

O imã chegou a fazer pessoalmente a lavagem ritual de um muçulmano falecido, mas, pela dificuldade de mudar as práticas dos cemitérios, pouco pôde fazer quanto à posição e à orientação do corpo, que deveria ter a cabeça direcionada para a cidade de Meca.

O comandante da embarcação otomana que levou o imã ao Rio de Janeiro contou-lhe o que ouvira a respeito da proibição da prática do Islã no Império do Brasil, assim como a de qualquer outra religião que não a católica em construções ou edifícios “que tivessem alguma forma exterior de templo”, de acordo com o Código Penal de 1830. Os muçulmanos tentavam ocultar sua religião para não ser punidos pelas leis imperiais. Após a Abolição (1888) e a proclamação da República (1889), reduziu-se consideravelmente a perseguição aos muçulmanos. E no século XX, em função da Constituição de 1946, que garantia a liberdade religiosa, árabes muçulmanos fundariam mesquitas e centros de estudos, inicialmente em São Paulo e depois em outras cidades.

O imã Al-Baghdádi descreve e critica certas práticas de origem africana que observa no Brasil, como a utilização de grigris, pequenas bolsas de couro que contêm versículos corânicos. Havia grande semelhança entre os amuletos utilizados no Brasil e na África. Também se refere a sistemas de adivinhação praticados por alguns muçulmanos, especialmente em Pernambuco, similares aos africanos.

No texto, são nítidos a sensação da grandiosidade do universo e o encanto que a floresta virgem e os seres que nela habitam despertaram em Al-Baghdádi. O imã, assim como outros autores de relatos desse período, exalta a fauna e a flora do Brasil. Fala da grande variedade de frutas que encontrou e se impressiona com seu aspecto, sabor e diversidade. Afirma que há no país cinqüenta frutas inexistentes no Oriente; ao descrevê-las, procura compará-las à noz, à romã, à tâmara e à uva.

Há semelhanças com outros viajantes estrangeiros nas comparações. Quando descreve a jaca, por exemplo, diz que ela vem de “uma árvore do tamanho da grande nogueira. Tem frutos maiores do que a abóbora, pendurados no tronco e nos grossos galhos da árvore. A parte externa assemelha-se à pele de um crocodilo e seu interior tem o aspecto de uma romã, embora a semente seja como uma tâmara. Seu sabor se parece com um doce feito de farinha e mel”.

Depois de permanecer por cerca de três anos no Brasil e de passar por mais de 20 cidades, em 1869 o imã iniciou a viagem de retorno, porque sua “alma sentiu saudade de ouvir o chamado à oração e de ver as mesquitas e os amigos”, como explica no manuscrito. Após passar por Lisboa, Gibraltar, Argel e Alexandria, foi a Meca em peregrinação. Depois, visitou sua família em Damasco e dirigiu-se a Istambul.

O manuscrito e a análise minuciosa que o acompanha contribuem para o estudo da História do Brasil de diversas formas. Em primeiro lugar, evidenciam a importância dos atores africanos, indígenas e árabes, entre outros, para a formação da identidade brasileira, uma identidade múltipla que muitas vezes é caracterizada apenas sob a perspectiva eurocêntrica.

De saudações e expressões a vestimentas, passando pela utilização de amuletos e pelos rituais e sonoridades de distintas irmandades, os escravos muçulmanos deixaram um legado extenso na cultura material e imaterial do Brasil, que ainda hoje se faz presente. O ato de vestir-se de branco na sexta-feira, dia sagrado para o Islã, é uma dessas marcas, bastante visível na Bahia. O uso de patuás como proteção remete ao campo religioso africano e às práticas muçulmanas dos escravos, especialmente aqueles que contêm textos em seu interior. 

Por fim, esse documento também vai ao encontro das análises modernas que ressaltam a resistência do negro à escravidão e a importância crucial da África para a História brasileira. Nesta época de maniqueísmos e belicismo, espera-se que este manuscrito contribua para que o diálogo sul-sul, sobretudo entre sul-americanos, africanos, árabes e muçulmanos, se amplie e seja guiado pela recomendação islâmica de que ninguém deve pretender ser superior ao estrangeiro, a não ser pela piedade.

PAULO DANIEL FARAH é professor da Universidade de São Paulo e autor do livro Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali. (Bibliaspa, FBN, BNA e BNC, 2007

 

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"Não é do propósito de Allah abandonar os crentes no estado em que vos econtrais, até que Ele separe o corrupto do benigno, nem tampouco de seu propósito é inteirar-vos, dos segredos do desconhecido; Allah escolhe, para isso, dentre os Seus mensageiros, quem Lhe apraz. Crede em Allah e em Seus mensageiros; se crerdes e temerdes, obtereis ilimitada recompensa". (Alcorão Sagrado: 3;179)

 

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Abu Huraira (R.A.A.) contou que o Mensageiro de Deus disse:
Deus é bom e não aceita nada que não seja bom, e Deus manda que os fiéis cumpram, assim como manda que façam os Seus Mensageiros, dizendo: Ó mensageiros, desfrutai de todas as dádivas e praticai o bem, porque sou sabedor de quanto fazeis. (23:51)  E Ele disse também: Ó crentes, desfrutai de todo o bem com que vos agraciamos, e agradecei a Deus, se só a Ele adorais.' (2:172) O Profeta então disse: O homem viaja uma grande distância, desgrenhado e empoeirado (para a peregrinação, a Umra e por outras razões), alçando as mãos aos céus (e dizendo): Ó Senhor! Ó Senhor!' enquanto come o que é proibido, bebe o que é proibido, veste o que é proibido, e se sustenta por meios ilícitos. Como podem suas orações serem ouvidas?" (Muslim)

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" O Allah, eu sou Teu servo, filho de Teu servo e de Tua serva, minha fronte está em Tuas mãos. Teu comando está sobre mim, é justa Tua conclusão sobre mim. Eu peço-Te, por todos os nomes que a Ti pertencem pelos quais Tú es nomeado, ou pelos que Tú revelastes em Teu livro, ou por algum daqueles que Tú ensinaste a alguma de Tuas criaturas, ou tiveste preservado-o no ocultamento, faze que o Teu Sagrado Alcorão se torne a primavera do meu coração, a luz do meu peito, a partida da minha tristeza e da minha ansiedade".

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Abu Abdullah Al Numam Ibn Bachir (R.A.A.) contou que ouviu o Mensageiro de Deus dizer:
"O que é lícito esta claro e o que é ilícito esta claro. Entre os dois há assuntos duvidosos em relação aos quais as pessoas não sabem se são lícitos ou ilícitos. Quem os evita de modo a salvaguardar a sua religião e a sua honra, esta a salvo, enquanto quem se envolve com algum deles, pode estar praticando algo ilícito, como aquele que leva seus animais para pastar próximo às terras reservadas para pastagem dos animais do Rei, e que são vedadas para os animais de outros; ao fazê-lo, torna possível que algum dos seus animais invada essas terras. O fato é que todo rei tem uma reserva, e a reserva de Deus é tudo aquilo que Ele proibiu. Em verdade em cada corpo humano existe um coágulo, se for benéfico, todo o corpo será sadio, se for maléfico, todo o corpo será doentio. Em verdade este coágulo é o coração." ( Bukhari e Muslim)